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FIFTY SHADES OF VANESSA PAQUETE

FIFTY SHADES OF VANESSA PAQUETE

MINHA HEROÍNA, MINHA COCAÍNA... MEU VICIO AMADO; MINHA VIDA & MINHA SINA / PARTE II

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Há muito que a toxicodependência já não é a preocupação número um dos portugueses. Mas 18 anos depois da intervenção no Casal Ventoso e da generalização dos programas de substituição com metadona persiste o consumo de rua de heroína e - sobretudo - cocaína, fumadas e injetadas. O número dos que consomem na rua terá até aumentado desde 2013, levando a autarquia a relançar a discussão sobre salas de consumo assistido - previstas na lei desde 2001.

 

Existe, ainda, quem acredite que consumir heroína é um mal menor, como se equiparasse tal acto ao consumo da nicotina.

 

Gostar de alguém assim dá trabalho. Causa-nos euforia & disforia. A instabilidade existencial é uma constante na vida dessa pessoa que avança sobre nós que nem um comboio, por vezes, e outras, ele próprio guia a sua vida como um alfa pendular, sempre a 200 KMS a hora. É impossível por-lhe freio, trava-lo ... Mas quem comanda as N/emoções;certo? A heroína junta amizades, é um catalisador de fuga, uma injeção de adrenalina & bem estar, a qual, dificilmente se foge de ânimo leve...A sensação de bem-estar é intensa, equiparada a um orgasmo, visto que atua exatamente como um ato sexual, libertando dopamina... Se pensarmos nisso; conseguem imaginar o quão fascinante deve ser obter um orgasmo por dia e libertar toda e qualquer preocupação & stress  ? A heroína é isso ! Energia, adrenalina, extâse; contagia, verga-nos, faz-nos ansiar por mais, cada vez mais a medida que sorbemos aquela sensação de bem estar interior... Gostar de alguém assim dá trabalho mas TAMBÉM vicia e tolda-nos os sentidos... O bem-estar da heroína aliena-nos mas também nos contagia, excita...

 

E sair não é fácil... Nada fácil...

 

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DIOGO

 

É uma espécie de corredor: de um lado um muro que sustem a encosta que foi do Casal Ventoso, do outro um prédio. Dez metros de comprido, talvez, por dois de largura. No chão, a erva muito verde é um puzzle de embalagens de kits de injeção, colheres e frasquinhos da água destilada usados para fazer o caldo, preservativos intactos na embalagem. Seringas não, porém. Porquê, Diogo exemplifica. Um metro e oitenta, rosto liso, agradável, roupa normal, sorriso - víssemo-lo noutro lugar e jamais suspeitaríamos - abre a mochila mal vê as técnicas da equipa de rua e o contentor de plástico amarelo e encarnado e tira dois sacos cheios de seringas usadas. Em troca, recebe uma mão-cheia de kits. Pede mais: "Pode ser?" Claro, respondem as raparigas. E preservativos, queres, perguntam. A resposta é uma gargalhada amarga: "Não, tenho muitos, obrigada."

 

Apresentados os repórteres, Diogo acede a falar um pouco, não muito porque tem pressa. Faz o retrato: 35 anos, a usar desde os 22. Começou pela cocaína; "snifada", depois fumada. Agora está no speedball, que é a injeção de heroína e cocaína misturadas. Gasta cinco euros por dia - "É o mínimo." Está desempregado mas, anuncia, começa a trabalhar na semana que vem (a que passou, neste caso), como manobrador de máquinas. Manobrador de máquinas? Não é um bocado incompatível com estas drogas? Sorri com bonomia: "Quando trabalho não consumo."

 

Acede a dar o número de telefone, pede licença educadamente e vai até ao fundo do corredor. A pressa era esta. Agacha-se, de costas para a assistência, prepara a injeção, sobe a manga do casaco. Fica ali muito tempo, naquele canto sem sol neste dia gelado que a meteorologia garante ser, até agora, o mais frio do inverno.

 

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CARLOS

 

De todos os locais do giro habitual das equipas de rua da Associação Crescer na Maior - a que pertencem Inês e Andreia -, esta zona, identificada como "Campo de Ourique/Casal Ventoso", é aquela em que nos primeiros seis meses de 2017 foram identificados mais consumidores de rua: 268. É também a recordista da entrega de "pratas", usadas para fumar heroína. Precisamente o que se encontra aqui perto, ao fundo de uma rampa, passado um portão arrombado, numa espécie de túnel sob os prédios. Quem chega da luz leva tempo a perceber que no breu, entre montes de lixo, estão dois homens. Um com 33, outro de 52 anos. O de 33 rejeita conversas: "Só se me orientarem alguma coisa, porque o tempo que perco a falar com vocês posso estar a orientar-me."

 

O outro começa por dizer o mesmo mas vai falando. Consome desde os 22, "com paragens", e é funcionário público. "Em três anos de trabalho nunca faltei", garante. "Mas estive de baixa e recaí e agora tenho vergonha de ir trabalhar, por causa do meu parecer. Se me vissem há um mês nem me conheciam." Muito magro, rosto sulcado, Carlos - chamemos-lhe assim, pediu para não ser identificado - sente-se sem coragem para aparecer assim aos colegas. "Todos os dias digo que amanhã vou." Mas não vai. Nem a casa, a maior parte das vezes: dorme no carro, na zona de Alcântara. As técnicas propõem-lhe ir para um albergue, combinam o dia e a hora para a entrevista - os albergues têm condições de acesso, não basta aparecer, e com o frio têm estado muito cheios. Carlos diz que sim, que vai.

 

Ele e o outro homem pedem a prata - um bocado de folha de inox, de rolo de cozinha - para fazer a chinesa (que consiste em colocar a heroína em pó sobre a prata, aquecê-la com um isqueiro, até liquefazer, e aspirar o fumo com um canudo). No fim, a prata usada há de juntar-se a outras, no chão. Carlos, ironia, trabalha - quando trabalha - na recolha de resíduos. Mas aqui ninguém recolhe nada, além das seringas usadas. Que ele nunca usou: "Nunca piquei, não gosto. Só fumo. Comecei na cocaína mas agora estou a usar heroína." São três da tarde e já gastou 70 euros. Como os arranjou? "Acha que lhe vou dizer o que fiz hoje? Não matei ninguém. E já chega, está bem?" Só para terminar: gostava de ter um local para consumir com mais condições? "Gostava era de sair desta merda."

 

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FRANCISCO

 

Chegam mais clientes da "prata". Inês e Andreia já deram toda a que tinham e também já não têm kits - Diogo ficou com quase todos.

 

Não é, pelo menos hoje, o caso de Francisco. Não vem a procura do pó castanho ou do pó branco. Francisco é mesmo o nome dele, faz questão: "Pode meter o meu nome. Não tenho vergonha do meu passado. Tenho é vergonha do meu presente." Veio de carro com dois amigos comprar haxixe, na parte de baixo da encosta do Casal Ventoso, e quando veem os coletes fosforescentes de Andreia e Inês aproximam-se. E querem kits e estão com pressa, têm de ir "à metadona" e além disso, diz, "temos substâncias ilícitas no carro, pode aparecer a polícia e não nos convém". Normalmente, explica depois, numa longa conversa telefónica, consome em casa, em São Domingos de Rana. "Há crianças na rua. E as outras pessoas se não consumirem não têm de estar a levar connosco. Mas já me aconteceu consumir na rua, porque estava aflito [a ressacar] e tem de ser naquele momento." Por esse motivo, sobretudo para proteger quem não consome, achava bem que houvesse locais próprios para consumo. "Até porque a polícia de vez em quando vai aos sítios onde as pessoas estão escondidas a consumir e enxota-as. Isso serve para quê? Não percebo."

 

Como Diogo, não tem qualquer sinal exterior do seu fado. Rapaz bonito, até, o que faz compreender as histórias que conta sobre as namoradas à bulha quando andava no liceu (só foi até ao nono ano). Agora, porém, não tem namorada. "Não há mulher que aguente. Ninguém aguenta. A minha última até era psicóloga mas nem ela conseguiu. É a gente e a droga e mais nada." Suspira. "Eu era contra as drogas, contra tudo isto. Fui desportista, campeão de atletismo de longa distância. Agora é como se a vida não fizesse sentido sem a droga. São muitos anos disto, a cabeça acaba por desaprender o criar sentido."

 

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A lucidez de Francisco parece uma contradição: se sabe tão bem o que se passa com ele, como é que não consegue dar a volta? "É como uma depressão. Tem de se conseguir sair do buraco. Às vezes parece que só me apetece morrer, é uma coisa um bocado estúpida. E quando consumo esse sentimento desaparece." Ah, isso: e se toda a gente precisasse de criar um sentido, e se toda a gente caminhasse, funâmbula, sobre o vazio, sabendo que o truque é nunca olhar para baixo? Francisco não sabe dos outros. Para ele foi a morte da mãe, há sete anos, a tirar-lhe o chão. "Ela deixou-me algum dinheiro e acabei por gastar tudo. Já só tenho a casa. Consegui parar de consumir, estive numa comunidade em que nos punham a trabalhar o tempo todo e não pensava em mais nada. Mas precisava que me ensinassem o que a minha cabeça tem de pensar. A ter vontade de viver. Isto não é vida, caramba. Há pessoas que gostam mesmo disto, que não querem sair. Eu quero."

 

Toma todos os dias a chamada metadona de baixo limiar ("baixo limiar de exigência", ou seja, que não exige abstinência ou cessação de consumos), ministrada em carrinhas - "Tem de ser, senão começo a ressacar, e a ressaca da metadona é muito má." E consome, diz, duas a três vezes por semana. "Muita gente sai da heroína, mete-se na metadona e deixa de consumir heroína porque não faz nada [ou seja: a metadona, também opiácea, bloqueia o efeito da heroína] e começa a consumir cocaína. É o meu caso. Comecei por fumar mas neste momento pico." Gasta "às vezes trinta, às vezes quarenta, outras vezes dez euros." O grama (que no jargão é sempre "a grama") de cocaína, como o de heroína, custa entre 40 e 50 e Francisco, que vive com um irmão de 36 anos e também consumidor, não tem neste momento rendimentos. Como faz? A resposta é vaga, como quase sempre que nesta reportagem se pergunta de onde vem o dinheiro. "Vou fazendo biscates e trabalhos que ninguém quer. Estou desempregado desde que recaí, a droga não condiz muito com o trabalho. Tinha estabilizado mas não conseguia arranjar trabalho. A gente arranja sempre uma desculpa."

 

 

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