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FIFTY SHADES OF VANESSA PAQUETE

FIFTY SHADES OF VANESSA PAQUETE

KALPARATU...WHAT YOU WILL NEVER KNOW

 

 

 

 

 

 

Inês...

 

O tempo foi diluindo a tua presença nas pedras gastas da calçada...

 

O tempo foi diluindo a tua alegria no mar em que te banhaste, vezes sem conta, nas ondas que te engoliam ao abraçares o azul do Oceano, na luz que comtemplavas na velha casa de campo onde passavas os teus Verões, saciada pela natureza, envolta em risos de veludo e gargalhadas estridentes; o tempo foi-te arrumando tranquilamente, pouco a pouco, nas palmas da sua mão mas nunca no coração daqueles que te amaram.

 

Passei o último mês mergulhada na tua história, a conversar contigo, em silêncio, tentando encontrar uma lógica numa morte que parece não ter qualquer lógica evidente.

 

Creio, que o meu apego a ti, se deveu a uma estranha coincidência de acontecimentos que nos enredaram numa teia emocional, da qual, ambos não conseguimos sair...Tu foste liberta, efetivamente, de uma maneira trágica e abrupta, tão célere quanto a velocidade da luz, e eu ainda aqui estou, não passados seis meses, mas sim, passados três anos a desejar que em troca da tua liberdade me aprisionem a mim no tabu do " além morte " e te façam regressar a ti para junto de quem mais tu amas...

 

De resto, este tem sido o sentimento partilhado por mim perante todas as jovens almas que faleceram recentemente e, cuja vida, deveria ter sido prolongada.

 

A morte de alguém em plena flor de idade (quinze anos) não parece ir de encontro a lógica uniformizadora da sociedade, no entanto, se a dita morte ocorrer num acidente ou numa qualquer outra eventualidade do destino que parecêssemos incapazes de travar a morte em si fica mergulhada numa espiral emocional desconcertante, no entanto, se a morte em si se for aproximando em pezinhos de lã, disfarçada de lampejos de esperança, mas envolta nos socalcos dos inevitáveis sobressaltos da alma e ladeada por abismos sinuosos, aí sim, aí a lógica inverte-se numa espiral desajustada.

 

Confesso (para quem tiver a ler estas linhas) que nunca te conheci e que a escrita desta carta resultou de uma necessidade minha de exteriorizar a minha angústia perante um Deus em quem sempre acreditei e, cujas parábolas, sempre mencionei e cujos evangelhos sempre li...Conheci-te sim, através da tua mãe, numa homenagem profunda e sentida à sua filha na sua nova condição de mãe enlutada.

 

Li e reli o relato da tua mãe quatro/ cinco vezes (aquelas que me foram necessárias) e, de todas as vezes, o choro estridente que fazia acompanhar a minha leitura denunciava bem a minha condição de alma frágil, coração esfaqueado e órfã de uma sociedade que não consigo compreender porque só um ser tão fragilizado quanto eu é que consegue exteriorizar tamanha carga de dor perante uma história que tão pouco lhe pertence...

 

Ainda que encontrado ao acaso (o livro), a tua história encarregou-se de dar um sentido inverso a minha; a coincidência das datas e a similitude da doença e dos vírus que nos foram atingindo a ambas aquando do " padecimento da mesma " ,fez-me encontrar um pouco de conforto em ti, embora, treze anos nos separassem, e eu já devesse ser uma adulta com idade suficiente para ter juízo. A verdade é que tu, Inês, fizeste-me regressar aos meus quinze anos de idade e, em boa verdade te digo que foi isso que aconteceu comigo aos vinte e seis anos; regressei aos meus quinze anos de idade, incumbida por uma missão e convicta que ainda poderia inverter a ampulheta do tempo, fazer rodar os ponteiros do relógio, conversar, rir, jogar-me numa piscina em plena forma física, com um corpo torneado e bem tonificado, adornada com um bronzeado de fazer inveja a quem quer que fosse e livre/livre para reconquistar o que havia perdido há muitos anos atrás: Foi assim que a minha viagem se iniciou Inês...Parece-te um pouco fútil não?

 

Se existe algo que eu aprendi a deambular por este mundo cibernauta e este aglomerado de redes sociais foi que quase todas as raparigas/mulheres tem uma obsessão pela sua aparência e o seu corpo e todas desejam alcançar a perfeição; creio que foi por aí também que se iniciou a tua viagem e, paralelamente à tua, a minha; daí me ter afeiçoado a ti!

 

Seria ousado da minha parte transcrever aqui algumas das palavras da tua mãe, no entanto, devo confessar-te, que visito com alguma regularidade o teu HI5 e escuto vezes sem conta o " Pedaço de Mim " de Chico Buarque que acompanha um vídeo teu do YouTube repleto de pedaços de vida teus onde demonstras uma cumplicidade comovente com o mundo que te rodeava, uma energia contagiante, um desapego total de tristezas e problemas demais e é aí que o meu próprio mundo ruí e desaba por completo; choro convulsivamente e, por vezes, acredita Inês, que nem sei porque choro...A uma dada altura, visitar o teu HI5 trazia-me tantas lágrimas à superfície, que me era impossível disfarça-las num choro silencioso e ameno. Tive de me ver obrigada a visitar essa tua página cibernauta apenas em privado e num local recôndito, não fosse a comoção trair-me e eu esvair-me, de novo, num rio de lágrimas. Se me perguntares porque o faço creio que a ti (e apenas a ti) eu consigo dar-te uma resposta, Inês...

 

Há três anos atrás houve uma inversão de fatos e acontecimentos na minha vida que me marcaram profundamente...

 

 

 

 

 

 

04-09-2010 / 5:12 Da Manhã

 

Comecei a redigir-te esta carta ontem, Inês, preparada psicologicamente, para trazer à baila a minha " anorexia nervosa e luto emocional " e confidenciar a uma meia dúzia de amigos a ginástica psíquica, física e moral que me fora necessário fazer para sobreviver nestes últimos 24 meses que mais me pareceram uma travessia de milhares de dias no deserto, a padecer de fome e a agonizar de dor...Estava imbuída de um sentimento de tristeza profundo, de um desassossego na alma inexplicável.

 

Ao falar da tua morte tão precoce não me saía da ideia que as infeções respiratórias de que ambas padecemos (tu devido a falta de defesas no teu organismo e ao avançar galopante da tua magreza e eu devido a incapacidade do meu corpo combater infeções atrás de infeções e aos meus 48 kg iminentes já desde meados de 2007) poderiam ter-nos unido num destino de morte certeiro. Quis Deus, no entanto, que os meus pulmões não se fechassem por completo, e alguma morfina à mistura para me aliviar a dor, me levasse de novo ao meu quarto alugado pelos meus próprios pés.

 

As infeções regressaram sempre (umas atrás das outras) com maior ou menor intensidade; a fraqueza do meu corpo não me permitiu combatê-las e as dezenas de antibióticos que me foram receitados estavam em vias de me originar uma úlcera no estomago. A tosse e o défice respiratório passaram a fazer parte do meu dia-a-dia e a noite já tão pouco existia para mim tais eram as convulsões de tosse e os espasmos de dor nos meus pulmões. Já, fora de casa há uns meses largos, habituei-me a ir trabalhar a servir às mesas no restaurante aonde havia conseguido uma colocação, com os olhos inchados, adornados com umas olheiras cavas e profundas a acusar uma noite de sono muito mal dormida (razão, pela qual, o dono pegava sempre comigo aliás).

 

Ambas seguimos um percurso levado aos extremos de debilidade emocional e vulnerabilidade existencial...

 

Recordo-me que, semanas antes de abandonar o restaurante devido à minha fraqueza física, os médicos haviam-me diagnosticado uma anemia e andavam em círculos e espirais infindáveis em busca de uma resposta para as minhas infeções. A respiratória, a falta de melhor, acusaram-me de padecer de bronquite asmática e receitaram-me um instrumento caríssimo para inalar quando se me fechasse a traqueia...As outras permaneceram desconhecidas e só poderiam ser combatidas ou com antibióticos ou com vitaminas (eu vivia em condições precárias, nem uma nem outra solução me pareciam adequadas). Duas semanas antes de cair na cama sem conseguir mexer um músculo que fosse do meu corpo (havia trabalhado até aos extremos para sobreviver) viciei-me em antibióticos para combater a dor...Era-me impossível esfregar o chão do restaurante, limpar as casas de banho e ainda servir as mesas sem me encher de Brufenes ao longo do dia tais eram as dores no meu corpo e em todo o meu organismo; as olheiras cavaram-se ainda mais e a magreza permitia-me usar corsários 34 e tops de miúdas da tua idade...Todavia, miraculosamente, eu sobrevivi! As minhas infeções respiratórias não se desenvolveram para uma pneumonia (como no teu caso) e não me cefeiram a vida, embora, eu desconfie que vontade não lhes faltava muito...Eu prossegui rastejando por entre os escombros (e não existe termo mais certeiro do que este " rastejar " e " escombros  ") e consegui ir sobrevivendo dia após dia / minuto após minuto; débil, fragilizada, cabisbaixa, incapaz de dar vazão as corriquices da vida, estagnada no sofrimento, alheada de um futuro que sabia não possuir e cada vez mais agarrada a um passado que me servia de âncora num mar de turbulência. Ai, Inês, se soubesses como amei o Tiago Madalena, por essa altura. Invocava-o incessantemente, mais do que alguma vez o fizera, por vezes, creio, que cheguei a viver febril e em delírio por aquela fantasia do passado.

 

A tua doença ceifou-te a vida nuns escassos seis meses, deixando para trás um mar de possibilidades pendentes ante todos aqueles que te rodeavam; muitos choraram por ti, a tua mãe teve a coragem de transpor em palavras o seu sofrimento e render-te, assim, à sua maneira, uma homenagem profunda.

 

Eu, de quando em quando, dedico-lhe umas músicas e uns poemas e troco uma ou outra palavra com ela através do teu HI5, página que ainda perdura, passados já quase três anos após a tua morte, ativa e repleta de mensagens dos teus amigos (sobre) vivos. Não imune à julgamentos alheios era tudo isto que me corria no pensamento enquanto te escrevia estas palavras num teclar premente, violento e ruidoso como que a demonstrar a minha fúria para com Deus; afinal de contas, havia-te levado a ti na flor da idade vítima de uma doença fruto de convencionalismos sociais e deixara para trás uma família inteira a chorar-te, uma mãe em luto para todo o sempre, páginas de uma vida por escrever.

 

Preparei-me psiquicamente para te dizer " Lamento Inês, lamento que a ceifeira te tenha levado a ti quando deveria ter sido eu a ir no teu lugar. Lamento-o profundamente, Inês, porque, por ti ,muitos lágrimas foram choradas e por mim ninguém iria chorar. Eu seria como uma passageira clandestina nos carris da vida, uma passageira ao vento por quem ninguém daria falta." Tal como tu, as cinzas também sempre foram a minha primeira opção; cinzas atiradas ao vento (as tuas foram enterradas) que cairiam para sempre no esquecimento...

 

Era este o meu estado de espírito esta tarde, imbuída de um sentimento de culpa, esvaída em lágrimas e a aclamar por uma calamidade qualquer que me levasse para o outro lado de lá...

 

Era este o meu estado de espírito esta tarde; eu a chamar a morte para me vir buscar e a enaltecer o seu poder de ceifeira de vidas e sabes que mais Inês ?

 

Não é que a morte me bateu mesmo a porta?

 

Mas mais uma vez o raio da ceifeira não veio no meu encalço...Aparentemente ouviu-me chamá-la mas tirou mais uma vida e, desta feita, a alguém que também tinha muito para viver e, sem sombras de dúvida alguma, não merecia morrer...

 

Sobrevivendo por entre os escombros, tal e qual, uma exilada de guerra encontrei guarida numa jovem idosa dos seus sessenta e sete anos, que aliás, também se encontrava bem familiarizada com a tua história e que, depressa, encontrou em mim uma neta de substituição...Eu, eterna, órfã de vida apaixonei-me rapidamente por aquela senhora vivaça, energética e de espirito indomável e jovial. Desde o inicio e, quebrado o gelo, os nossos laços solidificaram-se rapidamente; passávamos horas ao almoço a conversar, ela a contar-me coisas da sua mocidade e excertos da sua vida e eu, em troca, partilhava pedaços da minha...Apaparicava-me como se faz a uma criança, trazendo-me guloseimas, roupas que via nesta ou naquela loja a condizer com estes ou aqueles brincos que eu usava. Recomendava-me sempre a via dos estudos e nunca deixava que uma luzinha de presença me faltasse, à noite, no Hall de entrada para quando eu chegasse, nem tão pouco um agasalho na cama ou na mochila, para quando eu saísse do Instituto. Perguntava-me sempre se já havia almoçado ou jantado e tornou-se, muito rapidamente, num espaço de meses, na minha companhia e naquela pessoa, com a qual, eu trocava as mais intimas confidências; por vezes passávamos horas a conversar!

 

Hoje, cruzamo-nos no Hall da casa por volta do meio-dia. Vendo-me de cara amarrada perguntou-me relutante " Que foi dorminhoca, dormiste mal? Estás com um ar maldisposto! " Eu anui com a cabeça em jeito afirmativo, contando-lhe que acordara assim desassossegada do espírito e que tivera um pesadelo mal...A noite passada havíamos ficado as duas até as duas da manhã na sala-de-estar fazendo zapping nos canais e conversando acerca de tudo e de nada; um dos temas que surgiu com alguma pertinência foi a morte: falei-lhe na morte da minha mãe / na da Ana, esposa do meu pai,  enfim de como todo aquele ambiente fúnebre me havia alterado e tocado. Ela, por sua vez, falou da vida, das férias que ainda queria fazer, do passeio, ao qual, íamos as duas de Sábado à oito e dos seus eternos pretendentes. Eu queixei-me do Tomás (para variar) e ele também foi mote de conversa explicito...

 

Hoje, tive uma dessas crises depressivas, em que te escrevia o meu desalento para o expor no Facebook, e desabafar um pouco.

 

O meu desalento de final de tarde deu lugar a dor ao início da noite; chorei durante horas a fio, num crescendo de intensidade que me assustou. Só parei de chorar quando fui vencida pela exaustão física e a minha dor encontrou um corpo em frangalhos incapaz de dar vazão a qualquer sentimento. Hoje, não necessito de me olhar ao espelho para saber que tenho os olhos completamente inchados e que o sono não virá ter comigo tão cedo...A simpática e jovial sexagenária desmaiou-me no chão e aí encontrou a sua morte: o seu coração parou repentinamente, assim, sem pré-aviso, sem conceder um simples sinal que fosse a mim ou a ela...

 

Nas últimas horas revisitei a minha última semana com ela, tentando encontrar algo que explique a paragem do motor mas estou extenuada fisicamente e sinto-me já incapaz de chorar ou de raciocinar sequer: não consigo encontrar nada! A simpática e jovial sexagenária sentira falta de ar a meio da semana mas deslocara-se ao S. João e aí fora medicada convenientemente vindo para casa pelos seus próprios pés...Hoje, sinto-me culpada...Estava deprimida / maldisposta e ela stressada e apressada, creio que nem nos despedimos convenientemente uma da outra...

  

Por ora, apenas tenho algo a dizer-lhe Inês:

 

" Obrigado Dª. Helena, mil vezes obrigado, por me ter acolhido, tão ternamente, sob o seu teto e me ter administrado lições de vida imprescindíveis. Obrigado, por toda a atenção que me dispensou e por todos os almoços que me proporcionou. Obrigado, por todas as conversas de mãe-filha que tivemos e obrigado por me ter escolhido a mim para partilhar o seu dia de anos com uma garrafa de um bom vinho verde e um bacalhau à Brás...Obrigado por tudo! Jamais poderia supor que fosse partir da minha vida tão cedo e tão abruptamente...O Scobby e o Rafeiro não me largam. Trouxe-os para dentro. Hoje, excecionalmente, dormiram comigo. A porta do seu quarto está trancada e eles fixam-na, incessantemente, a espera de a ver sair de lá em trajes de noite para os presentear com um pedaço de carne. As suas netas vieram consolar-me (tinha razão, a Lau é um amor) e as suas filhas e genros foram muito compreensivos para comigo. A sua filha mais nova, Paula, estava um farrapo, incrédula, agarrada a todas as suas vestimentas; percorremos todo o seu quarto a procura dos seus exames médicos porque sabemos que não queria ser autopsiada. A sua vontade foi feita. Creio que chegamos a tempo. Eu ficarei por aqui mais um mês e todos os dias irei aguardar que me entre por uma das portas e me pergunte " Então filhota? " Por ora, não consigo dormir, e sei que não o farei tão cedo. Já sabe como é o Tomás, ficou também ele incrédulo, e incapacitado de me dar algum apoio que seja. Terei, mais uma vez, de enfrentar isto tudo sozinha. Vele por mim ,aí em cima, dê um beijo a Inês e a minha mãe se as encontrar ,e peça-lhes para que também elas me abriguem sob as suas asas...Obrigado, Dª Helena! "

 

04-09-2010

 

7:13 Da Manhã

 

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